Diagnósticos:
Nossas cidades são territórios segregadores e excludentes que não contemplam de forma equilibrada a diversidade humana, social e cultural. Essa exclusão se dá de modo socioespacial, econômico, político e cultural e resulta em processos de distribuição extremamente desiguais de renda e oportunidades. Se observa também a ausência da participação popular nos processos de discussão e construção das políticas públicas urbanas e, embora se observe uma tentativa de se encurtar a distância entre gestão de cidades e participação da população (representação popular) nesses processos, sem muito esforço, constata-se a existência de um divórcio entre os mecanismos populares de gestão e as políticas implantadas nas cidades. Ou seja, o discurso de construção conjunta da cidade não corresponde à realidade das ações que atingem a maioria da população. Esse cenário tem se agravado ainda mais com a escassez de articulação e transmissão de informações sobre a realidade urbana, o que resulta em conhecimento público restrito e incompleto sobre os territórios urbanos – condição que favorece a verticalização e a hierarquização dos processos de planejamento urbano.
A maioria das habitações produzidas pelo Estado e pelo mercado imobiliário não responde às necessidades de diversos setores da população, sobretudo quando elas promovem rupturas em relação às identidades territoriais e culturais da população. Esse modelo dominante de produção de moradias têm também agravado a segregação do território urbano, tanto internamente, estabelecendo fronteiras entre bairros de diferentes classes e grupos sociais, quanto na própria concepção dicotômica entre o território urbano e o rural. Além disso, esse processo de produção habitacional (e de cidades) não favorece a integração entre espaços públicos e privados.
O modelo de “cidade inteligente”, da forma como tem sido difundido nos últimos anos, não serve para a promoção de inclusão social e cidadania. Quase sempre tratam-se de soluções vendidas por grandes empresas para governos sem participação dos cidadãos e sem adequação ao contexto e particularidades de cada cidade. Alternativa esta que frequentemente resulta de forte assimetria no controle de dados existentes sobre as pessoas. O Estado e as empresas, detentoras dessas tecnologias, tomam para si todo o conjunto de informações dessa população e inviabilizam o acesso às mesmas por essas pessoas. Há, portanto, pouca discussão pública sobre os potenciais efeitos do uso do Big Data na gestão das cidades, ressaltando seus problemas e discutindo os possíveis benefícios para o cidadão. Iniciativas políticas para promover a transparência de dados públicos inexistem e poucas pessoas conhecem os seus direitos voltados à construção da cidade. Paralelamente se observa um nível muito baixo de incentivo do poder público à apropriação independente e colaborativa das tecnologias abertas, desenvolvidas pela sociedade civil e que podem ser adaptadas às demandas de cada comunidade.
A desigualdade socioeconômica tem tornado as cidades lugares dominados pelo medo. A ausência de altruísmo, empatia e respeito à diversidade humana está muito relacionada com as barreiras econômicas, culturais, de estigmas sociais, além dos determinantes raciais, de classe, de gênero, espaciais e de faixas etárias. Apesar da concentração de pessoas nas cidades, ainda se vive em grupos isolados. Relações de confiança que ocorrem em instâncias locais não conseguem se expandir para o contexto urbano mais amplo. Faltam espaços públicos que estimulem a convivência com a diferença. Estes fatores resultam em um tecido social frágil e desconectado (fragmentado).
A cidade tem proporcionado a experiência da multidão, que segue um fluxo coletivo, mas também é capaz de se organizar e demandar direitos básicos por meio de diferentes estratégias de ação política. Diversos grupos e coletivos conseguem até propor novas metodologias e olhares para velhos problemas. No entanto, estas micro transformações não são articuladas entre si, nem com a gestão pública, e não alcançam poder de transformação do espaço urbano.
Recomendações:
É necessário investir em políticas de transparência sobre os diversos dados pessoais coletados pelo Estado e por empresas no contexto urbano. É essencial revelar o processo de coleta, uso e apropriação dessa matriz de dados que circulam no espaço virtual, inclusive para estudar sua aplicação na melhoria dos sistemas urbanos.
Realizar consultas públicas sobre este tema, envolvendo toda a sociedade, especialmente a juventude e as organizações sociais de base, e não apenas grupos e organizações de grande porte já consolidados.
Como ação complementar para promover a transparência e o compartilhamento de informações com a sociedade, é importante estimular o uso de software livre na gestão pública, especialmente em sistemas de informação para gestão e planejamento participativo.
A moradia e a apropriação comum do espaço público devem ser tratadas como direitos básicos essenciais, fortemente relacionados com o direito de acesso e uso da terra. Partindo deste princípio, deve-se promover novas formas de produção habitacional, que não sejam baseadas exclusivamente na mercantilização da terra e da moradia. Também não é adequado que a produção de moradias seja conduzida exclusivamente pelo Estado. Faz-se necessário elaborar políticas de produção de moradias que respeitem as identidades e necessidades específicas de cada grupo/povo, estimulando práticas de participação social e autogestão, para construir o habitat urbano com ampla participação da sociedade.
A construção de políticas de habitação deve ainda considerar o meio rural como espaço de moradia essencial para grande parte da população. Pois, apesar da grande concentração populacional no contexto urbano, há uma demanda habitacional muito importante no contexto rural, onde o território de moradia possui uma escala de apropriação do espaço muito diferenciada, e que precisa ser respeitada.
Para construção de políticas urbanas inclusivas é importante considerar que muitos dos pequenos processos de mobilização social têm potencial para catalisar grandes transformações, através do esporte e da cultura – por exemplo. Desta forma, recomenda-se que o direito de participar e transformar a cidade (e o lugar / território) seja inserido na educação escolar. Essa educação deve ser baseada no reconhecimento e empoderamento das iniciativas de diálogo que já proponham trocas de saberes em comunidades, fomentando e aprimorando redes de equipamentos sociais, culturais, educacionais, esportivos, e estimulando novos métodos de participação no uso dos recursos.
É fundamental fomentar e fortalecer mais iniciativas de colaboração da população das “periferias” para participar da gestão urbana. Periferia não se refere somente às zonas mais afastadas dos centos urbanos (periferia geográfica), mas principalmente aos territórios segregados e com infraestrutura precária dentro das cidades (periferia social). As políticas urbanas devem viabilizar processos de planejamento e gestão participativos que vão além do discurso. Uma das estratégias para alcançar esse objetivo é partir de planos microrregionais, como prática de gestão pública participativa, com mecanismos deliberativos e não apenas consultivos.
Faz-se necessário elaborar e aplicar instrumentos de planejamento e gestão pública do território urbano, que sejam efetivamente transparentes, de fácil leitura e compreensão por parte da população. Esses instrumentos deverão servir para que a população conheça o processo de gestão, ajude a construir as políticas para as cidades, incluindo seus instrumentos e recursos.
Neste sentido, propõe-se incentivar a formação de grupos de formação e debate sobre os sistemas de gestão e funcionamento das cidades, bem como criar novos mecanismos de participação nas decisões políticas que afetam a vida de todos. Instrumentos de diálogo entre a sociedade civil e o poder público, estimulando e fortalecendo ações autônomas dos cidadãos no diagnóstico e soluções para os problemas das cidades.
Os equipamentos públicos e mobiliários urbanos precisam expressar a cultura das pessoas, levar em conta as características das novas gerações cada vez mais familiarizadas com interatividade e simulação.
O tecido urbano precisa ser afetivo, ou seja, quando do planejamento de intervenções no território urbano faz-se necessário considerar as relações históricas, culturais e afetivas dos cidadãos com sua cidade. O estímulo às práticas de trocas de experiência e de convivência a partir da oralidade, bem como, ações que estimulem a afetividade e a generosidade deverão possibilitar o encontro e o respeito entre os diferentes presentes no espaço urbano. Iniciativas semelhantes estimularão o fomento, a criação e a expansão de redes para o desenvolvimento local e regional, incentivando o sentimento de pertencimento.
Em todas essas recomendações, é necessário, portanto, que sejam priorizados os direitos difusos, considerando a cultura local e, para o pleno andamento dessas ações, deverão estar envolvidos as crianças e jovens, além dos adultos e idosos.